palestra do Rodrigo PCB


Crise, Ideologia e Criminalização dos Movimentos Populares

(A crise e o mundo do trabalho – apresentação no Alegrete, 16 de junho de 2009)

Estranhem o que não for estranho

Tomem por inexplicável o habitual.

Sintam-se perplexos ante o cotidiano.

Tratem de achar remédio para o abuso.

Mas não se esqueçam / de que o abuso é sempre a regra.

(Bertolt Brecht, A exceção e a regra)

O trabalho do intelectual é garimpar as palavras, deslocá-las, construir conceitos, aprofundar as reflexões e abrir novos campos de questões. Desconfiar do trivial, do que parece óbvio. Desafiar o senso comum, praticar o senso crítico. Recusar falsos problemas, evitar debates vazios que não nos levam a lugar algum.

Sendo um intelectual orgânico, comprometendo-se com a organização e preparação da classe trabalhadora para a disputa política, este trabalho deve ser ainda mais cuidadoso, pois diz respeito à vida e ao precioso tempo de milhares de lutadores que colocam a sua energia militante à prova todos os dias, “na ponta da chuteira”, lutadores frente aos quais é preciso reconhecer que sem eles não somos nada.

Agradeço demais ao convite do Professor José Grisa, e parabenizo ao conjunto dos lutadores-organizadores por este importante encontro. Sou um professor universitário recém-chegado a estas bandas do nosso país-continente, e espero poder contribuir com algumas considerações extraídas da reflexão teórica junto ao materialismo histórico e dialético, e da minha própria militância comunista, como membro e dirigente do Partido Comunista Brasileiro, PCB.

Esta crise, como qualquer crise, nos desafia, testando nossas forças e explicitando nossas debilidades. Temos aí diante de nós o péssimo resultado das recentes eleições na Europa: o crescimento da direita européia é um sinal assustador para os interesses das maiorias trabalhadoras, essa classe cada vez mais internacional, mais desterrada e mais proletária.

Não temos, é verdade, o direito de encarar esta como mais uma crise, seria irresponsável. As dimensões dessa crise são inéditas. Mas ao mesmo tempo, é preciso que se diga que corremos sempre o risco de cair na lógica do inimigo de classe, que hegemoniza as idéias, que nos dirige culturalmente, achando que só temos crise quando os ricos têm de colocar o rabo entre as pernas, como agora, desmoralizando-se perante a opinião pública com a queda dos mitos neoliberais.

Mas atenção: se podemos dizer que caem os mitos neoliberais, não é por isso que caem as políticas neoliberais – afinal o capital não se alimenta de mitos; somente a nossa paciência e a nossa imobilidade se alimentam de mitos. Temos exemplos diversos de que o neoliberalismo continua na ordem do dia, como o TLC Peru-EUA contra os indígenas e a floresta amazônica, como as OSCIPS do projeto privatista de Yeda, assim como as OS do prefeito do Rio Eduardo Paes, as medidas que o governo de SP e a reitora da USP querem implementar, e o avanço do privatismo na era Lula através dos leilões de petróleo e gás, das PPPs, da priorização do agronegócio em detrimento da reforma agrária.

Para as classes dominantes, as crises não são nenhum presente dos céus, mas podem sim servir de oportunidade para a acentuação de algumas tendências, como as gigantescas fusões e a precarização dos contratos de trabalho, dando chances ao Capital para aumentar ainda mais a extração de mais-valia, a exploração dos trabalhadores.

O aumento do desemprego é um dos sinais mais dramáticos dessa crise. Um milhão de trabalhadores já perderam seus empregos na América Latina desde o estouro da crise. A previsão da CEPAL e da OIT é a de que até o final deste ano outros quatro milhões de postos de trabalhos poderão ser extintos na América Latina. (Em 2008, o subcontinente já registrava QUINZE MILHÕES de desempregados).

Os jovens, ainda mais que os idosos, são duramente afetados. Nesta conjuntura de crise, os patrões ficam mais avarentos e não gostam de formar mão-de-obra nova, a não ser que seja para poder REcontratar em condições as mais indignas possíveis. Vejamos alguns dados recentes do IPEA, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, ligado ao Ministério do Planejamento – logo, dados oficiais.

Há 51 milhões de jovens brasileiros entre 15 e 29 anos, sendo que 66% deles estão fora das salas de aula. Apenas 13% deles estão cursando curso superior. A principal causa alegada para não estar estudando, entre os homens é trabalhar para ajudar a família e, no caso das mulheres, a gravidez. Agora o dado do desemprego: 46% dos jovens estão desempregados. E 50% dos outros 54% que estão empregados, trabalham sem carteira assinada, ou seja, do total de jovens, 27% tem emprego com carteira assinada, e portanto direitos trabalhistas e previdenciários. E 31% deles podem ser considerados miseráveis, pois possuem renda per capita inferior a meio salário mí­nimo por mês! E aí o maior dos índices: 70% dos jovens considerados pobres, são negros.

Nós, e sobretudo a nossa juventude, estamos prestes a viver momentos ainda mais difíceis, é verdade. Mas no entanto não podemos nos abalar. Não tanto como os ricos e poderosos se abalaram com as notícias do último setembro, com o estouro da crise no coração do império. Walter Benjamin assim nos interpela: o estado de emergência em que vivemos não é a exceção, mas a regra. Temos de nos ater a um conceito de história que corresponda a essa visão. “Crise” é a própria condição da imensa maioria das pessoas no mundo, todos os dias. A instabilidade, as adversidades, as incertezas, as limitações, são expressões e realidades que fazem muito mais sentido para os trabalhadores do que para os patrões, desde que o mundo é mundo capitalista.

Mas não enfrentamos tudo isso de peito aberto. Não há mais espaço no marxismo para o economicismo, para a falta de mediações e articulações efetivas entre a estrutura e a superestrutura, entre o esqueleto social, os músculos e os nervos. Não suportaríamos nem resistiríamos a tudo isso sem as ideologias. Peço licença, porém, para discutitr o sentido de ideologia que quero ressaltar.

Na crítica e na compreensão das ideologias, podemos identificar três vertentes: o cientificismo, o culturalismo e a ideologia enquanto prática e posicionamento cotidiano.

No passado, e até mesmo recentemente, muitos pensaram a ideologia enquanto desconhecimento e fantasia, em oposição à ciência, ao conhecimento. No máximo, a ideologia comportaria a realidade de modo invertido ou mistificado.

Encarar a ideologia desse modo cientificista, opondo categoricamente conhecimento e desconhecimento, ciência e ideologia, é quase um convite para achar que a ciência está livre e acima da luta de classes, é quase achar que os cientistas e instituições pairam sobre a realidade que investigam, que não sofrem coerções e limitações decisivas, que são sujeitos universais lidando com objetos universais.

Não podemos mais pensar que as ideologias não têm absolutamente nada de científico, que são pura burrice nossa ou emburrecimento alheio. Todas as ideologias partem de determinados conhecimentos, partem de saberes que lhes asseguram alguma positividade, da mesma forma que os preconceitos (pré-conceitos) são também pós-conceitos, são saberes (vindos de outros sujeitos e lugares) que praticamos de modo pragmático, sem questionarmos. Não colocar a mão na jaula do tigre, sem saber a história pregressa daquele tigre, ter medo de viajar de avião, não permitir que o seu filho ande por aí com aquele amiguinho esquisito, são atitudes preconceituosas mas não estão destituídas de saberes que asseguram a reprodução de determinadas relações e práticas sociais. Assim são as ideologias.

Através de outra vertente, culturalista, alguns pensam a ideologia enquanto sistema de idéias e posturas que herdamos quase que por osmose, de forma passiva, em oposição às idéias que conscientemente aderimos e defendemos. Seria a ideologia então um fenômeno mais “cultural”, como nossos hábitos, hábitos que trariam como conseqüência o desvio e a diluição de nossas responsabilidades políticas.

Desse modo, tão dicotômico e simplista como a primeira oposição entre conhecimento e desconhecimento, a política vira pura racionalidade e a cultura o seu oposto, pura irracionalidade, ou tradição e folclore. Ao invés de ver a cultura como uma política disseminada, ela é vista como uma “natureza” de determinados sujeitos sociais. É o que vemos de forma muito clara em algumas tentativas de justificar a violência doméstica e o machismo, encarados como problemas apenas culturais, e não políticos.

O quê? Naquele país as mulheres têm o órgão sexual mutilado? Ah, não se preocupe, isso é cultural, não venha você querer impor o seu ponto de vista aos outros! Ou então: religião, futebol e política não se discute! Sofremos! E pagamos.

Também neste caso é preciso trazer a dialética e desfazer qualquer oposição simplista entre cultura e política. Nenhuma cultura é natural ou historicamente incontornável. A própria palavra, que vem de agricultura, mostra uma compreensão e uma intervenção dos homens na ordem da natureza: onde havia vegetação natural, passamos a ter cultivos que os próprios homens escolheram fazer. Mas um momento: os próprios homens??? Quais e quantos dentre eles escolhem o que cultivar, o que promover? Afinal, faz toda a diferença uma monocultura de cana, para exportar combustível para os EUA, e uma horta comunitária, para fabricar remédios e alimentos para o povoado e a cidade.

Desse modo, se nenhuma cultura é “natural”, imutável, também é verdade que ela é um fenômeno social, econômico e político, que não mexemos ao bel-prazer. Também a política é assim...

Assim como a política está longe de ser a racionalidade pura, o pragmatismo absoluto, o frio cálculo dos interesses manifestos e suas negociações, também a cultura não pode ser pensada como se não tivesse nada a ver com a política. Os preconceitos e as violências cotidianas são culturas e são políticas, assim como a nossa indiferença.

É verdade, os marxistas, estando aí o próprio Marx – que em certa ocasião afirmou não ser marxista – variam muito na conceituação de ideologia. Em geral, elas se relacionam com estas duas macro-vertentes comentadas, cientificista e culturalista, uma centrada nas formas de DESconhecimento do mundo em sua própria ordem e a outra nas formas de atuação (ou falta de atuação) política sobre ele.

Para não jogar fora o bebê com a água suja do banho, em relação à vertente cientificista podemos sim diferenciar o trabalho da ideologia e a prática científica, não os encarando de forma dicotômica, de forma não dialética, mas como diferentes posturas que se relacionam contraditoriamente.

O trabalho do cientista alimenta-se daquilo que Bertolt Brecht chamava de distanciamento. Podemos pensar também em deslocamento. O cientista hoje sabe que ele constrói seu observatório, ele organiza seus objetos, analisa e interpreta.

Pode parecer uma afirmação absurda, mas a postura científica pressupõe certa opção pela imbecilidade, pela ignorância, pelo estranhamento, pelo “nada sei” do filósofo. Como se não soubesse de nada e precisasse olhar de outro lugar e com outros olhos que não aqueles do dia-a-dia, aqueles que tudo ou quase tudo reconhecem e identificam. Assim buscamos desfazer, em alguma medida, os efeitos da ideologia, pelos quais reconhecemos razões e verdades que foram descobertas por outros, em outros tempos e lugares.

Em relação à vertente culturalista, é preciso alertar que a ideologia não pode ser pensada apenas como visão de mundo, ponto de vista, conjunto de idéias, forma de encarar as coisas etc. O risco dessa leitura é distanciar superestrutura e estrutura, por cabeça e coração de um lado, pés e mãos de outro.

A ideologia é algo tão mais simples e mais cotidiano, que se não houvesse ideologia simplesmente não sairíamos da cama. Se temos motivação suficiente para acordar e sair da cama quando ainda temos sono, quando ainda está escuro e, para piorar, faz um frio de rachar, isto por si só já é um fenômeno ideológico. É prova de que estamos interpelados, de que fomos ganhos para alguma idéia que nos coloca em ação, em movimento – ficar rico, ficar inteligente, lutar contra o latifúndio, ver se os empregados estão trabalhando direito, ajudar o filho a se arrumar para sair,... muitos são os motivos e muitas são as ideologias, quanto ao capitalismo, à importância da educação, à luta pela terra, ao gerenciamento dos negócios, à paternidade ou maternidade, etc.

Assim, a ideologia não se refere apenas a belas idéias e engenhosas manipulações. A ideologia se refere também (e sobretudo) a práticas e posicionamentos que assumimos no dia-a-dia de nossas vidas. E isso ocorre porque há diferentes formas de ser um empregado, um patrão, um estudante, um militante político, um pai, um filho, etc. Todas estas formas disputam entre si e nos colocam em ação.

A ideologia, então, é o que nos coloca em ação, seja para o bem de nossa classe, seja o contrário. Seja para criminalizarmos o capital, seja para criminalizarmos os trabalhadores. Como criminalizar o capital? Denunciando seus crimes contra a humanidade, o assalto cotidiano de nossas energias e capacidades, a destruição de nossos meios, a diluição de nossos fins, o estímulo às guerras, o apagamento do passado, o congelamento do presente, a negação do futuro. Algumas ideologias, que não são nem desconhecimento nem folclore, nos colocam em marcha e em assembléia para destruir o criminoso capital. Outras ideologias, que também não são desconhecimento ou folclore, nos criminalizam, aos que praticamos a luta, que fazemos o enfrentamento à ordem e às ordens do capital e seus agentes.

Um grande desafio que temos é deslegitimar estas ideologias, não tolerar a menor intolerância contra os lutadores de nosso povo, pois são eles que tornam o nosso ar respirável, que fazem do presente não uma prisão, mas um degrau para o futuro. Como na poesia de Maiakovski, os inimigos começam roubando uma flor do jardim e terminam roubando a nossa voz. Ou como na de Brecht, primeiro eles levam um negro, um judeu, um padre, um comunista, até que em algum momento eles nos levam – e já não podemos fazer nada. Mas eles não têm o direito de fazer isso, são ladrões e seqüestradores, e se nos convencermos de que somos maioria, haveremos de reaver o que é nosso.

Então voltamos ao tema da crise. De nada adiantaria atravessarmos uma crise realmente terminal, que colocasse em xeque a condição subalterna e miserável das maiorias trabalhadoras, só pelo gostinho de ver o capitalismo ruir, numa conjuntura em que ainda nos faltam outras relações sociais de produção capazes de se apoderarem e gerirem esta gigantesca maquinaria global que o capitalismo propiciou.

Precisamos construir novas legitimidades no tecido social, disseminar novos saberes, culturas e políticas, para chegarmos ao ponto análogo, semelhante àquele em que, em 1955 nos EUA, a prisão de uma negra por se recusar em dar o lugar no ônibus para uma branca gerou uma imensa comoção e vários protestos. Estes protestos contra o racismo geraram líderes e geraram consciência. A possibilidade de tornar um negro chefe dessa nação até ontem extremamente racista, deve muito àqueles protestos, àquela intolerância e sensibilidade contra a criminalização da resistência.

Quando as maiorias se sensibilizarem a este ponto contra a criminalização do comércio ambulante, das lutas pela terra, pelo teto e pelo ensino superior público, dentre outras lutas que são reprimidas com violência, estaremos em outro patamar da luta de classes. E muitos e muitos outros se recusarão a entregar o seu lugar, garantido por direito e por justiça, ao agronegócio, à especulação imobiliária, às redes atacadistas, à mercantilização do ensino.

Enquanto somos criminalizados em nossas demandas e nas ações que realizamos para consegui-las, corremos o sério risco de sairmos dessa sociabilidade atual, regulada pela acumulação de capital, e passarmos ao fim de qualquer sociabilidade – o que seria aprofundar a barbárie e talvez possa nos conduzir a uma nova era feudal, porém muito mais instável, destrutiva, violenta, mistificante e opressora. No lugar dos cavaleiros medievais, exércitos e tecnologias de segurança e repressão muito mais sofisticadas. No lugar do clero ignorante e supersticioso nos preparando para a boa morte, a religião individualista massificada pela mídia, que nos mata em plena vida, sendo que a expectativa de vida hoje é mais que o dobro do que era no período medieval. No lugar da criminalização dos supostos infiéis, hereges e feiticeiras, a brutal criminalização da pobreza e da luta contra ela.

Muito antes dessa crise o mundo do trabalho já estava em frangalhos. Somos em número cada vez maior os que trabalhamos, trabalhamos mais, porém trabalhamos cada vez mais afastados uns dos outros – afastados tanto em pensamento quanto fisicamente, espacialmente. Competimos mais do que cooperamos entre nós, ao contrário do que aconteceu até a época da fábrica fordista. A necessidade de trabalhar foi sendo histórica e socialmente expandida, estendida a quase todas as parcelas da sociedade. Se até o período medieval e início da era moderna trabalhar era visto como uma atividade rebaixadora, suja, uma indignidade e uma flagelação ( tripalium era o nome para um tipo de chicote com três pontas), eis que no capitalismo outra ideologia do trabalho, de extrema valorização ideológica da figura do trabalhador, foi aos poucos se formando.

Podemos dizer que o ápice dessa ideologia do trabalho se deu com o fascismo, e aqui no Brasil, bem guardadas as proporções, com o getulismo da época do Estado Novo, que enviou a judia comunista Olga Benário, grávida, de presente para os nazistas: segundo o fascismo, em suas muitas versões, o trabalhador, desde que não crie problemas e se atenha disciplinadamente ao seu ofício, sua arte de trabalhador, deve ser louvado e recompensado. Mussolini, o ditador italiano, gostava de dizer: quem trabalha não suja as mãos!

Mas muita atenção, muita calma nessa hora! Cada um no seu quadrado: o papel social do trabalhador, classe-em-si, é trabalhar, e trabalhar bem. E só. E tome pau nesses trabalhadores (vagabundos, dizem eles, com consciência de classe-para-si, dizemos nós) que ao invés de estarem trabalhando fecham o trânsito. Avenida é lugar de carro, não de protesto. Acontece que nenhum lugar é, em si mesmo, lugar de protesto: as assembléias legislativas, as praças, os bairros proletários,... não são naturalmente lugares para protestos. Protestar é justamente interromper algo, parar e denunciar, ainda que por alguns instantes, uma injustiça, uma violência, é resistir, e isso é inaceitável para os poderosos e para os que estão sob os efeitos de suas ideologias. O futuro não é deles, o outro mundo possível, socialista, dos trabalhadores, é o fim do seu próprio mundo, por isso eles não têm tempo a perder com interrupções.

Isto é assim, meus amigos, em todo este imenso conjunto do pensamento conservador, desde os filósofos gregos: a única virtude reconhecida das classes subalternas, para os conservadores, a virtude possível do povo trabalhador é saber controlar os seus apetites (a sua sede de cachaça?), fazer direito o seu trabalho (sendo prestativo, colaborando,...) e, mais importante, saber manter-se perfeitamente e exclusivamente no seu lugar. Toda uma ciência administrativa foi gerada para garantir a maior extração possível dessas máquinas de trabalhar que somos nós – “que somos”, não, que nos tornamos.

Hoje em dia, com toda a literatura de auto-ajuda e a nova indústria cultural do subemprego, da precarização dos contratos de trabalho, vende-se a idéias de que precisamos amar nossas correntes, amar como ninguém a empresa que nos explora. Querem que sejamos pobres laboriosos, empresários e engenheiros de nós mesmos, eternamente atrás de nossa qualificação e reciclagem para o mercado, como se fôssemos lixo, eternamente sem saber sobre o dia de amanhã.

Se cedermos aos discursos nos quais o problema é a nossa baixa qualificação, nossa preguiça, nossa falta de criatividade, nossa honestidade (!), etc., ficaremos correndo atrás do rabo, reproduzindo a lógica e a saúde do capital. Não faremos mais do que jogar o seu jogo, sofrer as suas dores, gritar gol e comemorar como bobos o seu crescimento.

Em geral, ou na maior parte do tempo, jogamos este jogo. Acontece que os conflitantes não preexistem ao conflito. Os conflitos formam e informam os seus agentes, as suas partes. Por exemplo, as equipes de futebol não surgiram antes do futebol. Não há uma história da burguesia e uma história do proletariado, que um dia se encontraram e onde um pisou no pé do outro, tendo início uma briga dos diabos. Há sim uma história – e muitas histórias – do capitalismo. Mas dizer isso não significa cair num fatalismo estruturalista, onde estaríamos condenados a morrer abraçados aos senhores de nosso tempo. Significa que é preciso mudar de terreno, ampliar o leque de questões, questionar a essência mesma deste conflito maior. É preciso deixar de ser o que querem que sejamos eternamente.

Se nossas plataformas de reivindicações não forçarem os limites, as fronteiras desta ordem social, estaremos buscando apenas perder por um placar menos humilhante (como foi o 5 a 0 que o Flamengo tomou neste domingo), o que nos dará alguma sobrevida no campeonato.

Mas é claro, não se pode também lutar por uma vida melhor, mais integral e plena de sentidos e possibilidades, se não se está vivo e com disposição para lutar. Saco vazio não pára em pé! As muitas formas de luta dos trabalhadores – associações, sindicatos, movimentos, partidos – não têm como abrir mão das lutas por salários, contra a retirada de direitos e outras que são consideradas lutas imediatas. O difícil, mas também decisivo, é somar e conjugar a estas lutas a perspectiva de assumirmos outra posição na ordem social, uma posição não subalterna, alimentarmos o desejo pelo que (hoje) é impossível, por aquilo que é impossível nesta ordem.

Pra isso é preciso mudar a cultura, plantar outras sementes. É preciso mudar a política, assumir outras atitudes. É preciso nos conhecermos mais e desconhecer, ignorar, deslegitimar a autoridade de nossos inimigos de classe, como ousam fazer os indígenas peruanos, que clamam agora por solidariedade global.

Neste sentido, levamos pânico aos donos do capital, aos agentes do Estado, aos senhores da guerra, quando ao invés de festejar nossa condição e identidade de trabalhadores, nossa condição de escravos modernos que produzem muito mais por menos chibatadas, quando ao invés de valorizarmos nossas misérias, valorizamos nosso potencial.

Será que é verdade que a vida não nos ofereceu mais que a possibilidade de fazermos filhos? – daí o termo romano, extremamente preconceituoso na sua origem, proletário, aquele que só detém a sua incontável prole e nada mais. Se é verdade, então é preciso responder que nossos filhos e tudo o mais que somos capazes de produzir por nós mesmo são o que de mais precioso temos, pois com eles somamos saberes e disposição, experiências de lutas e expectativas de transformações mais radicais, teoria e prática revolucionária.

Podemos derrotar os conservadores e reacionários, desde que recusemos as acusações de crimes que nos querem infligir, desde que entendamos que por trás da criminalização das lutas está uma tentativa desesperada de impedir que a história aconteça, que o presente se descongele, que o mundo mude a nosso favor, que passe a ser um mundo comum em possibilidades de desenvolvimento dos seres comuns. Daí a temos a expressão mundo comunista, de seres comuns, sem hierarquias prévias, sem as camisas de força da divisão social do trabalho entre classes – e não entre aptidões e potencialidades.

O proletariado já carrega consigo este projeto. Ele é ao mesmo tempo uma classe e uma não-classe. Só tem os seus grilhões a perder. O proletariado é o agente do litígio que problematiza radicalmente o modo de produzir e administrar as coisas.

O capitalismo foi revolucionário desenvolvendo as forças produtivas à enésima potência, por isso lhes agradecemos, mas agora nos dêem licença, senhores capitalistas, que é preciso criar outro mundo, onde as condições de vida de todos sejam efetivamente asseguradas, e possamos migrar para outros problemas coletivos que não estes gerados pelas indústrias da fome, da doença e da ignorância.

É claro, a atual crise afeta muito diretamente a nossa capacidade de dizermos e difundirmos estas verdades, afeta a nossa capacidade de nos conhecermos, de nos reconhecermos e de deslocarmos a roda da história, deslocando-nos do papel subalterno que nos prepararam e do qual se esforçam para provar que é o único papel possível.

Contraditoriamente, em termos globais corremos o risco de ficarmos ideologicamente ainda mais capitalistas e mesquinhos, mais intolerantes com as interrupções do trânsito e da novela, mais resistentes em eleger operários sindicalistas, negros de nome islâmico, mulheres com ou sem marido político ao lado, índios que defendem o plantio ancestral da coca, bispos progressistas, militares antineoliberais. Ainda que a maioria destas vitórias eleitorais tenha sido seguida de azedas frustrações, elas pontuam a movimentação popular na base da sociedade civil e algumas vezes pontuam o desespero das velhas elites políticas obrigadas a aceitar gestores que não saiam diretamente de seu antro fétido e imundo.

Se isso for verdade, se temos no horizonte a trágica perspectiva de um recrudescimento político, isto mostra que nossa luta contra a criminalização dos movimentos populares, que é a luta pela disseminação de uma cultura de tolerância e simpatia com os lutadores do povo, a favor da legitimidade e do direito de protestar e buscar uma vida melhor para a classe trabalhadora em seus muitos segmentos, se for verdade que a chapa vai esquentar ainda mais para o nosso lado, isto mostra que lutar contra a criminalização das lutas populares é muito mais importante do que eleger políticos que supostamente são ou foram de esquerda.

Peço licença para chamar, uma vez mais, o grande Bertolt Brecht, que escreveu uma poesia que sintetiza tudo o que eu quis dizer hoje.

Desconfiai do mais trivial,

na aparência singelo.

E examinai, sobretudo, o que parece habitual.

Suplicamos expressamente:

não aceiteis o que é de hábito

como coisa natural,

pois em tempo de desordem sangrenta,

de confusão organizada,

de arbitrariedade consciente,

de humanidade desumanizada,

nada deve parecer natural

nada deve parecer impossível de mudar.

(Bertolt Brecht, Nada é impossível de mudar)

Por isso, precisamos refletir profundamente sobre essa crise, saber identificar as ideologias que buscam nos imobilizar, que nos desmobilizam, e precisamos combater com todas as nossas energias a criminalização dos lutadores do povo, sob pena de cairmos numa conjuntura fascista. Mais uma vez:

pois em tempo de desordem sangrenta,

de confusão organizada,

de arbitrariedade consciente,

de humanidade desumanizada,

nada deve parecer natural

nada deve parecer impossível de mudar.

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