Terça-feira, Junho 16, 2009Racismo: ´Estadão´ queria alguém contra as cotas, mas errou na fonte; gringo defendeu cotas e Cubapor Rodrigo Vianna, em Escrevinhador Parte da elite brasileira detesta essa história de cotas. Há um jornalista, à frente da Redação da TV Globo, que jura não haver racismo no Brasil. Até aí é problema dele. Mas o sujeito insiste em pautar "reportagens" que comprovem essa tese. A Globo tem duas ou três "fontes marcadas para falar" exatamente aquilo que o diretor de jornalismo quer ver no ar. São "especialistas" que defendem a mesma tese: o racismo no Brasil não existe, e estabelecer cotas é que vai "insuflar" o racismo nessa nossa sociedade doce, tranquila, onde impera a "democracia racial". |
Entenderam? Racismo não existe. Cotas é que vão criar racismo.
A "tese" é exposta seguidamente, nas "reportagens" da Globo, por uma socióloga do Rio de Janeiro e por um geógrafo paulista que tem opinião sobre tudo!
Para não parecerem insensíveis, esses "especialistas" (sob patrocinio permanente do Ratzinger do jornalismo global) costumam defender que o certo é "educação de qualidade para todos", assim brancos pobres e negros pobres ganhariam o direito a um futuro melhor.
Então, tá. A gente vai ficar esperando. Ou melhor: a gente não vai esperar, porque a sociedade brasileira resolveu investir nas cotas. Para horror da turma do Leblon e Higienópolis.
A idéia dos que defendem cotas é a seguinte: educação de qualidade é pressuposto, serve para negros e brancos. Serve no longo prazo. E serviria mais ainda se essa fosse uma sociedade menos desigual. As cotas, por outro lado, dão um empurrãozinho a mais para aqueles que saem em desvantagem nessa corrida: os negros e seus descendentes, que foram escravizados durante mais de 3 séculos. Trata-se de fazer Justiça: trata-se de oferecer ferramentas diferentes para quem parte de condições diferentes.
A turma anticotas aceita, no máximo, no máximo, "umas cotas para pobres".
Até entendo: assim, não se mexe na velha ferida do racismo, nas memórias dos navios negreiros. Assim, não se atiçam velhas culpas, nem velhas perversidades. Assim, brancos e negros seguem irmanados pela "lei", que trata a todos com igualdade nessa doce terra. Certo?
O "Estadão" (aquele jornal meio decadente de São Paulo), que eu saiba, também é contra as cotas. Mas isso não impediu o jornal de entrevistar um professor dos Estados Unidos que desmonta a tese de Ratzinger e seus asseclas.
Veja um trecho (a pergunta do repórter embute a tese da turma anti-cotas; e a resposta, direta, ajuda a desmontar a tese).
"(P) - Críticos das cotas para negros dizem que elas teriam o efeito colateral de "fomentar o ódio racial". O Brasil correria o risco de ser repartido em etnias. O sr. concorda?
Conforme dados oficiais do IBGE nos últimos 30 anos, o Brasil efetivamente já é uma sociedade bicolor. Pardos e pretos experimentam níveis de desigualdade e discriminações bastante parecidos e o IBGE juntou os dois grupos numa só categoria de ?negros?. Criar um sistema de cotas dividido em brancos e negros seria reconhecer a realidade social e racial do país. A sociedade brasileira não pode deixar de responder às marcadas e seculares desigualdades raciais que a afligem. “
Sugiro que vocês leiam a entrevista na íntegra. Até para notar como é confusa a edição feita pelo jornal.
O título (e o texto de abertura) dão a entender que o especialista é contra as cotas para os pobres. Mas o que ele afirma é diferente: "cota para pobres não vai resolver os problemas enormes dos afro-brasileiros que estão na luta para entrar, ou avançar, na classe média". Ou seja: cota para pobre não basta, seria preciso ir mais longe, combinar vários tipos de ação afirmativa.
O título escolhido pelo jornal deixa tudo na dúvida. Foi proposital?
OBS: Posto outro texto dotado de alguns problemas, mas que é importante para entendermos o cenário que envolve a temática das cotas. O autor do texto diz que as "cotas dão um empurrãonzinho a mais", não é isso! A implantação das cotas é uma política pública e um direito conquistado pelos movimentos sociais. E as cotas não tem um caráter somente de reparação como possa parecer, mas também de proposição para um outro projeto de universidade e por conseguinte de sociedade.
A entrevista completa pode ser acessada no link abaixo.
http://www.estadao.com.br/
Segunda-feira, Junho 15, 2009
De volta ao passado
Uma área maior do que o Estado da Bahia será doada a particulares sem cuidados que garantam condições mínimas de justiça, progresso e sustentabilidade
A história da propriedade da terra sintetiza uma parte importante da história do Brasil.
Com a Independência, em 1822, caducaram as ordenações portuguesas que organizavam o sistema jurídico colonial. Nossa primeira Assembleia Constituinte, reunida no ano seguinte, não legislou sobre a terra, que se tornou um bem livre, mas nem por isso acessível. Mantida a escravidão, só os senhores podiam exercer a prerrogativa da propriedade.
A aproximação da Abolição colocou na ordem do dia um problema grave: quando os escravos fossem libertados, como se conseguiria mantê-los trabalhando nas grandes fazendas, sedes do poder oligárquico, se o país era despovoado e a terra era livre? Surgiu daí a nossa primeira Lei de Terras, em 1850. O acesso legal à propriedade fundiária passou a depender de doações da Coroa, seguidas de operações de compra e venda.
Os fazendeiros da época ganharam o direito de legalizar propriedades por meio de simples declaração, registrando nas paróquias locais os limites das terras que consideravam suas. Formaram-se assim gigantescos latifúndios, marca registrada da nossa história.
Quando a terra era livre, os trabalhadores eram escravos; quando se aproximava o dia em que eles seriam livres, ela foi aprisionada. Assim, na segunda metade do século 19, permeando Império e República, o Brasil resolveu a questão da escravidão e ao mesmo tempo criou a questão agrária, a qual, jamais resolvida, desdobrou-se na questão urbana atual.
Primeiro nas senzalas, depois nos latifúndios e agora nas favelas ou periferias, sempre o mesmo pano de fundo: multidões sem direitos.
Dada a enormidade do país, grande parte do território permaneceu na condição de terra pública até recentemente. Muitos pensadores brasileiros do século 20 imaginaram que o grau de concentração da propriedade rural diminuiria à medida que posseiros se espalhassem pelas áreas de fronteira agrícola que permaneciam em gradativa expansão.
Não foi o que ocorreu. Com a cumplicidade de sucessivos governos federais e estaduais, por meio da grilagem e da violência, por doações ou por compra a preço simbólico, implantou-se nessas áreas novas - especialmente o Centro-Oeste, a Amazônia meridional e o cerrado setentrional - uma estrutura agrária ainda mais concentrada do que aquela que predomina nas áreas de ocupação secular, com óbvias repercussões sobre o tipo de agricultura que praticamos.
A história se repete na Amazônia, a última fronteira. Se a medida provisória 458 for sancionada pelo presidente da República, na forma como saiu do Congresso Nacional, estaremos diante de uma volta ao passado.
Uma área maior do que o Estado da Bahia será doada a particulares sem cuidados que garantam condições mínimas de justiça, progresso e sustentabilidade. Grandes e médios proprietários ficarão com mais de 70% das terras que hoje são públicas. Um grileiro ou uma empresa que tenham 50 prepostos poderão legalizar, praticamente de graça, latifúndios de 75 mil hectares, mesmo que já possuam outras propriedades rurais. Com cem prepostos, reais ou fictícios, a área dobrará. Por persuasão ou por coação dos pequenos, em uma região em que o Estado é ausente e falha a cobertura da lei, estará aberto o caminho para um aumento desenfreado da concentração fundiária.
A Amazônia é uma região frágil, onde se chocam interesses nacionais e internacionais, sem que Estado e sociedade tenham sido capazes de definir e implementar um projeto coerente de desenvolvimento. É um dos grandes desafios para o nosso futuro, talvez o maior de todos.
Repetir o que foi feito em 1850 não é a melhor decisão.
Artigo de Cesar Benjamin, editor da Editora Contraponto. Publicado na Folha, de 13 de junho de 2009.
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