O Carnaval Local

"Em Alegrete, quem não é fazendeiro é boi"
Mário Quintana

Fui olhar o carnaval de rua de nossa cidade, estava muito bonito. Embora de raízes européias, mais especificamente, nascido em Veneza, o nosso carnaval é sui géneris, e a contribuição cultural do negro (afrodescendente) é extraordinária – samba, gingado, passistas, baianas, batucada, enfim, está presente em tudo, por isso se notabilizou, por ser uma festa popular – apesar de hoje ter se elitizado bastante.

Esta raiz trouxe-me um primeiro questionamento, quando vi e ouvi o desfile de uma das mais tradicionais escolas de samba, a Unidos dos Canudos, com a temática exposta – o boi – falava em feiras, remates etc, coisas que se ligavam a nossa matriz econômica do ruralismo arcaico.

Logo me veio à memória qual foi, historicamente, o papel do negro nesse processo produtivo – o boi foi um bem econômico do estancieiro e o negro foi o escravo:

“Escravo de saladeiro me dói saber como foi
Trabalhando o dia inteiro, sangrando o mesmo que o boi
A faca que mata a vaca, o coice, o laço que vem
O tronco, a soga e a estaca tudo é teu, negro, também

(Neto Fagundes)

Lembra as charqueadas, a Escravidão, que é a mesma em qualquer parte – o mito do fazendeiro bonzinho é que é uma farsa. A diferença do fazendeiro escravista e do senhor de engenho do nordeste é só o produto de exportação.

A dissertação de mestrado em História (UFRGS), de Graziela Bonassa sobre Alegrete do século XIX, ilustra: No intervalo de tempo entre as décadas de 1830 e 1870, a relação entre bens de raiz e animais praticamente se inverte: a participação dos bens de raiz mais que duplica, enquanto que a dos animais se reduz a menos da metade. Já a mão-de-obra escrava, apesar de se manter como terceiro principal ‘investimento’ entre os bens de produção, também perde em participação no montante do patrimônio produtivo, assim como os animais”. Escravos e bois eram bens de produção, mudou muito nos dias atuais?

As perguntas sociológicas que ficam são: se as escolas de samba são também instrumentos, muitas vezes, de denúncia da realidade, contestação, assim como foi a pobreza e o lixo com Joãozinho Trinta, o que levaria uma comunidade majoritariamente afrodescendente, como é a do bairro Canudos, a exaltar uma temática que historicamente a oprimiu? Isso foi discutido com essa comunidade ou faz parte da mercoescola (escola de mercado), já que no ano passado já tinha ganhado com o arroz? Seriam temáticas impostas pelo capital e pela classe dominante opressora aceitas em troca de patrocínio, para fazerem seus súditos rirem por uns dias? A riqueza cultural da comunidade canudense merecia algo mais seu, mais próximo de sua história de resistência e de luta contra a escravidão, assim como fizeram os quilombolas.

No resultado, deu a lógica. Os bens de riqueza da classe dominante – o arroz e o boi – não poderiam perder – aqui é a terra deles, aqui eles mandam ainda, nada muda (somente a chegado do MST ao centro do latifúndio). Mudam-se as formas para manter o conteúdo, ganhar a qualquer preço.

Outra constatação é que não entendo nada de carnaval, sai de lá (da avenida) com certeza de que a Imperatriz não perderia o carnaval por tudo que vi, e muito mais do que apenas a minha torcida, muitos amigos, canudenses inclusive, me disseram isso, me enganei eu e mais uns 80% que viu o carnaval desapaixonadamente.

Alguns analfabetos políticos gritarão, isto é política, como se esta não permeasse todos os poros sociais ou, ingenuamente, o arroz ou o boi ganharem aqui não é um ato político?

No ano que vem, provavelmente, os eucaliptos (se a Stora Enzo não quebrar) poderão ganhar o carnaval, aí sim a escola vai desfilar homogênea, todos vestidos com a mesma árvore, em perfeita harmonia. Ou será o cavalo crioulo?


José Ernesto Alves Grisa

Prof. Mestre em Sociologia



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