Quando a música tortura


Empenhados em quebrar a resistência de prisioneiros das guerras do Iraque e do Afeganistão, interrogadores norte-americanos classificam de “tortura leve” quando forçam os detentos a ouvir rock pesado em volumes exorbitantes
De acordo com as autoridades militares norte-americanas, foi Deus o primeiro a escrever a estratégia da “tortura pela música” no manual de campo: colocando o amplificador na máxima potência sobre o inimigo.- O exército de Josué usava o som das trombetas para causar medo no coração do povo de Jericó. Seus homens podem não ter conseguido quebrar os muros literalmente com as trombetas, mas corroeram a coragem do inimigo - disse o Tenente Coronel aposentado da Força Aérea, Dan Kuehl, que ensina operações psicológicas (ou psyops) na National Defense University Fort McNair, em Washington DC.Ele acrescenta:– Talvez naquele caso os muros psicológicos é que tenham realmente sido fragmentados.Não dá para saber se Deus aprovaria a atual lista de músicas dos EUA. No alto da lista está a banda de death metal Deicide, cuja faixa Fuck Your God era tocada para prisioneiros no Iraque.Sem dúvida, aqueles que propuseram a tortura pela música devem pensar que foi um longo caminho desde o início dos anos 1990, quando na época o FBI tocava música extremamente alta em Waco, Texas, durante o cerco ao grupo Branch Davidians (culto religioso originário de dissidentes da Igreja Adventista do Sétimo Dia) que terminou com a morte de 82 pessoas. O repertório da época incluía These Boots Are Made for Walking, cantada por Nancy Sinatra, filha de Frank Sinatra.Apesar de ser desagradável ter uma música tão alta sendo tocada nos abrigos, trazê-la para um interrogatório fechado em uma cela foi um salto abrupto em termos de operações psicológicas. Contudo, no estranho léxico norte-americano do século 21, os militares norte-americanos chamam isso de “tortura leve”. Tortura parece aceitável se não for muito “pesada”.A música Enter Sandman, do grupo Metallica, foi tocada em níveis cacofônicos, por horas intermináveis, na baia de Guantânamo e em um centro de detenção na fronteira entre o Iraque e a Síria. Um prisioneiro iraquiano disse que isso ocorria em um “lugar não-identificado chamado “a discoteca”.Infelizmente, alguns artistas não ficam ofendidos com o uso de sua obra para torturar.– Se os iraquianos não estão acostumados com liberdade, então eu fico feliz de ser parte dessa descoberta - disse James Hetfield, vocalista do Mettalica.Sobre o fato de sua música ser uma tortura, ele ri:– Nós temos castigado nossos pais, nossas mulheres e as pessoas que amamos com essa música desde sempre. Por que com os iraquianos deveria ser diferente?Uma postura dessa pode parecer natural para um artista que faz música ao estilo do Metallica. Então não é preciso especular se Herfield está sendo ingênuo ou deliberadamente ignorante.O fato é que nenhuma pessoa sensata toca música em volume tão ensurdecedor, repetidamente, 24 horas por dia, e espera se manter saudável. Apesar disso, o Pentágono conseguiu atingir seu objetivo e muitas pessoas avaliam que tortura pela música não é nada mais do que ter a irritante experiência de ser forçado a ter o encontro com o Ipod de outra pessoa.Binyam Mohamed, residente britânico que permanece encarcerado na Baia de Guantânamo, conhece um pouco sobre esse tipo de tortura. A CIA o prendeu no Marrocos, onde seus torturadores repetidamente colocavam uma gilete no seu pênis durante 18 meses de suplício. Ele descreveu como métodos de tortura psicológica ainda eram piores do que isso e afirmou que podia antecipar a dor física e saber que ela eventualmente cessaria. Mas experiência de vivenciar lentamente a loucura como resultado da tortura pela música era algo um pouco diferente.- Imagine que seja dado a você uma escolha. Perder a visão ou perder a razão? Como é terrível demais imaginar seus olhos sendo arrancados, há pouca dúvida sobre qual você escolheria.Para aqueles que têm a falta de sorte em estudar tortura, tudo isso não é novidade. Membros do IRA (Exército Republicano Irlandês), presos no norte da Irlanda durante os anos 1970, relembram o uso do som alto lançado em suas celas como a pior lembrança daqueles dias. Um interrogador de Guantânamo estima despretensiosamente que demora cerca de quatro dias para “quebrar” uma pessoa se as sessões de interrogatório forem intercaladas com luz estroboscópica e música alta.“Quebrar” é outro eufemismo que é usado entre torturadores, como se “quebrando” uma pessoa fosse um tipo de soro da verdade psicológico. Obviamente, o resultado que você obtém de uma pessoa “quebrada” tem muito pouco a ver com verdade.Muito mais que puro barbarismo, há várias razões em porque o uso de música como tortura falha em suas ambições. Como sempre na “guerra contra o terror”, há algo desconexo entre o suposto objetivo dos militares e os métodos usados para atingí-los. Uma ordem é dada por um burocrata que teve uma ideia brilhante e depois deixada na mão de soldados no campo, para que usem de acordo com suas imaginações.Como é que alguns entediados soldados tiveram a ideia de usar a música Babylon, de David Gray, tocada na prisão Abu Gheaid, no Iraque, desafia a compreensão. Às vezes, as pessoas simplesmente não entendem a mensagem das letras. Em 1984, Ronald Reagan tentou cooptar a música Born in the USA, de Bruce Springsteen, como um hino patriótico para usar em sua campanha de reeleição, apesar da música falar sobre a traição governamental em relação aos veteranos do Vietnã.Algumas vezes, as seleções usadas são ironicamente apropriadas para prisioneiros detidos por anos sem julgamento We are the Champions, do Queen (/Paguei minha contribuição/ dia após dia/ cumpri minha sentença/ mas não cometi nenhum crime) era a favorita dos torturadores em Camp Cropper, no Iraque.Outras canções desavisadamente verbalizam o que poderia ser o pensamento íntimo dos prisioneiros: Killing in the Name Of, da banda Rage Against the Machine, usada em Guantânamo: /Alguns desses que colocam a força em ação/ são os mesmos que queimam crucifixos/ f...., eu não vão fazer o que você me diz.Inevitavelmente, quando interrogadores mal treinados são encorajados a deixar a sua imaginação fluir, eles saem do rumo em direção às suas perversas idiossincrasias.Finalmente, a música mais usada como tortura é I Love You tema do programa infantil do dinossauro Barney. Quando usada nesse contexto, a letra pode parecer completamente inapropriada: /Eu te amo, você me ama - nós somos uma família feliz/ Com um beijo e um grande abraço meu para você/ Você não vai dizer que me ama também? Mas qualquer um que tenha filhos que assistam esses programas de tevê saberá o quão irritante é.No negócio da tortura, esse tipo de música é chamado de música da inutilidade, pensada para convencer o prisioneiro da inutilidade em manter sua posição. Já é tempo para os músicos que se opõe ao uso de sua música como tortura com seres humanos façam algum barulho – e eles estão começando.No Meltdown Festival do ano passado, em South Bank, Londres, cuja curadoria era da banda Massive Attack, o assunto da tortura pela música foi destaque. Projeções mostrando o horror de prisões secretas serão usados em sua turnê mundial.Quando o presidente Bush visitou recentemente a Inglaterra, a fundação Reprieve (de direitos humanos) o saudou tocando a música tema do dinossauro Barney. O que vem agora? Quem sabe o lançamento de uma compilação especial, poderia ter o nome de “Agora é isso que eu chamo de tortura – seleção de oito músicas que o presidente Bush levaria para uma ilha deserta, e que ele tocaria para si pela eternidade.”

Comentários