O ser humano é estômago e sexo

De certa forma, o filme 'Ensaio sobre a cegueira', lançado ano passado e baseado na obra do português José Saramago, se aproxima do clássico 'Laranja Mecânica', de Stanley Kubrick. Ambos expõem a frágil moral humana e a relatividade dos valores da sociedade atual. Em Laranja Mecânica a ultraviolência do indivíduo é combatida com a ultraviolência do Estado, através de cruéis tratamentos psiquiátricos que buscam a reeducação dos delinquentes pela eliminação dos instintos naturais de violência. Em Ensaio sobre a cegueira, uma epidemia de cegueira ataca toda a população de uma cidade em um país não-identificado, e a primeira reação do Estado, enquanto nem todos estão contaminados, é confinar os cegos em uma espécie de hospital abandonado, isolando-os do mundo.
Em ambos filmes, a estratégia do governo para manter a sociedade de uma forma dita 'equilibrada' - vigiando, punindo e excluindo os que não se adaptam à ela - resulta apenas na criação de monstros ainda maiores. No filme de Kubrick, o protagonista vai de algoz à vítima, perde toda capacidade de reação e se transforma em uma "laranja mecânica", um ser vivo que reage mecanicamente à estímulos. Já no filme dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles, o grupo de cegos é vigiado pelo exército 24 horas por dia, tem a comida racionada em porções cada vez menores e é proibido de sair do local, sob pena de fuzilamento. Recebem apenas uma pá para enterrar seus próprios mortos no pátio. Até o dia em que descobrem que o mesmo exército e o governo foram contaminados e que não há mais ninguém para impedi-los de sair. A doença era imune à burocracia, como afirma o narrador.
A laranja mecânica torna-se passiva, inerte, sem reações. Já no Reino dos Cegos, em que não há tais tratamentos psiquiátricos, cada um se despe de toda sua moral e de seus valores e passa a agir apenas por instinto: a busca por comida e sexo. Ou diríamos simplesmente, a busca pela sobrevivência. Os confinados se dividem em alas onde a iminência de uma guerra é cada vez maior, onde a comida é trocada primeiramente por dinheiro e jóias, e depois pelo uso das mulheres de cada grupo. Acontece que, entre os cegos, há uma única mulher imune à doença, e apenas seu marido sabe disso. Ela testemunha o horror, a imundície, o desequilíbrio das pessoas ao seu redor. Mas ao mesmo tempo a solidariedade, a compaixão e o altruísmo que resistem em meio ao caos.
A maravilhosa contradição contínua da espécie humana. Criaturas em seu estado primordial, instintivo, puro. É difícil sair impassível do filme. Deixa a gente pensando como seríamos se nos livrássemos dessas roupas tão pesadas, mas necessárias para viver harmoniosamente em nosso harmonioso mundo, de pessoas e idéias de plástico, tão fluidos que acabam se tornando amorfos, indefinidos.

Amália C. Leites

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